Além de torcedor do Flamengo e da
Mangueira, sou um amante da Feijoada, tanto é que reservamos os horários do
almoço de sábado do Pirilampo Bistrô para servir somente a autentica Feijoada
Carioca (se é que existe isso). O fato é que como natural da cidade do Rio de
Janeiro, desde criança esse prato esteve presente na comensalidade familiar,
nos bares, restaurante e reuniões de amigos nos finais de semana e que por sua vez
havia um padrão em sua composição, ou seja, feijão preto, cortes de
carne suína, arroz branco, couve manteiga, farofa, laranja, molhos de pimenta e
cebola e uma batidinha de limão para descontrair - como se fosse possível
descontrair ainda mais em momentos como esses entre cariocas.
Corre em bocas que a feijoada é um prato que tem sua origem nas senzalas, resultante de sobras de carnes de porco dispensadas pelos senhores de escravos
que às utilizavam misturando ao feijão, só que não!
Para minha surpresa e
acredito que para grande maioria dos admiradores desse cardápio, a Feijoada
tem sua história um pouco diferente. Para isso elegi o artigo escrito por Rodrigo
Elias que é Mestre em História Moderna e Contemporânea pela UFF e doutor em
História Social na UFRJ para esclarecer essa “conversa fiada”, com sua
permissão
FEIJOADA
Breve História de uma Instituição
Comestível
“O paladar não é tão universal
como a fome”, disse Luís da Câmara Cascudo em 1968. O ilustre etnógrafo e mais
importante folclorista do País referia-se a um prato brasileiro, talvez o mais
tipicamente brasileiro: a feijoada. Para ele, era preciso uma predisposição
especial para que se pudesse apreciar os sabores do prato, assim como para
usufruir de todas as nuanças de certos vinhos. Em outras palavras, a culinária
– e mesmo a “simples” apreciação desta – pressupõe a educação de um importante
sentido, o paladar. Por isso, é bom conhecer um pouco da trajetória dessa
instituição nacional que, além de ser uma das mais perenes, tem a vantagem de
ser comestível. Convencionou-se que a feijoada foi inventada nas senzalas. Os
escravos, nos escassos intervalos do trabalho na lavoura, cozinhavam o feijão,
que seria um alimento destinado unicamente a eles, e juntavam os restos de
carne da casa-grande, partes do porco que não serviam ao paladar dos senhores.
Após o final da escravidão, o prato inventado pelos negros teria conquistado
todas as classes sociais, para chegar às mesas de caríssimos restaurantes no
século XX. Mas não foi bem assim. A história da feijoada – se quisermos também
apreciar seu sentido histórico – nos leva primeiro à história do feijão. O
feijão-preto, aquele da feijoada tradicional, é de origem sul-americana. Os
cronistas dos primeiros anos de colonização já mencionam a iguaria na dieta
indígena, chamado por grupos guaranis ora comanda,
ora comaná, ora cumaná, já identificando algumas variações e subespécies. O
viajante francês Jean de Léry e o cronista português Pero de Magalhães Gândavo,
ainda no século XVI, descreveram o feijão, assim como o seu uso pelos nativos
do Brasil. A segunda edição da famosa Historia Naturalis Brasiliae, do holandês
Willen Piso, revista e aumentada em 1658, tem um capítulo inteiro dedicado à
nobre semente do feijoeiro. O nome pelo qual o chamamos, porém, é português. Na
época da chegada dos europeus à América, no início da Idade Moderna, outras
variedades desse vegetal já eram conhecidas no Velho Mundo, aparecendo a
palavra feijão escrita pela primeira vez, em Portugal, no século XIII (ou seja,
cerca de trezentos anos antes do Descobrimento do Brasil). Apenas a partir de
meados do século XVI, começou-se a introduzir outras variedades de feijão na
colônia, algumas africanas, mas também o feijão consumido em Portugal,
conhecido como feijão-fradinho (de cor creme, ainda hoje muito popular no
Brasil, utilizado em saladas e como massa para outros pratos, a exemplo do
também famoso acarajé). Os cronistas do período compararam as variedades
nativas com as trazidas da Europa e África, e foram categóricos, acompanhando a
opinião do português Gabriel Soares de Souza, expressa em 1587: o feijão do
Brasil, o preto, era o mais saboroso. Caiu no gosto dos portugueses. As
populações indígenas obviamente o apreciavam, mas tinham preferência por outro
vegetal, a mandioca, raiz que comiam de várias formas – e até transformavam em
bebida fermentada, o cauim – e que caiu também nas graças dos europeus e dos
africanos. A mandioca era o alimento principal dos luso-americanos da capitania
de São Paulo, os paulistas, que misturavam sua farinha à carne cozida, fazendo
uma paçoca que os sustentava nas suas intermináveis viagens de caça a índios
para a escravização. Mas também comiam feijão. Feijão preto.
O feijoeiro, em todas as suas
variedades, também facilitou a fixação das populações no território lusoamericano.
Era uma cultura essencialmente doméstica, a cargo da mulher e das filhas,
enquanto o homem se ocupava com as outras plantações e com o gado. A facilidade
do manejo e seus custos relativamente baixos fizeram com que a cultura do
feijão se alastrasse no século XVIII entre os colonos. Segundo Cascudo,
tornou-se lugar-comum nas residências humildes do interior do País a existência
do “roçadinho”, no qual era atributo quase que exclusivo das mulheres o
“apanhar” ou “arrancar” feijões. A dispersão populacional dos séculos XVIII e
XIX (até então a colonização era restrita às áreas litorâneas), seja por conta
dos currais do Nordeste, do ouro e dos diamantes do Centro-Oeste ou das
questões de fronteira com os domínios espanhóis no Sul, foi extremamente
facilitada pelo prestigiado vegetal. Atrás dos colonos, foi o feijão. Ao lado
da mandioca, ele fixava o homem no território e fazia, com a farinha, parte do
binômio que “governava o cardápio do Brasil antigo”. No início do século XIX,
absolutamente todos os viajantes que por aqui passaram e descreveram os hábitos
dos brasileiros de então mencionaram a importância central do feijão como
alimento nacional. Henry Koster afirmou em Recife, em 1810, que o feijão cozido
com o sumo da polpa do coco era delicioso. O príncipe Maximiliano de
Wied-Neuwied comeu feijão com coco na Bahia, em 1816, e adorou. O francês Saint-Hilaire
sentenciava, nas Minas Gerais de 1817: “O feijão-preto forma prato
indispensável na mesa do rico, e esse legume constitui quase que a única
iguaria do pobre”. Carl Seidler, militar alemão, narrando o Rio de Janeiro do
Primeiro Reinado, descrevia, em 1826, a forma como era servido: “acompanhado de
um pedaço de carne de rês (boi) seca ao sol e de toucinho à vontade”,
reproduzindo em seguida uma máxima que atravessaria aquele século e constitui
ainda hoje, para o brasileiro comum, uma verdade insuperável: “não há refeição
sem feijão, só o feijão mata a fome”. Mas, destoando dos outros cronistas,
opinava: “o gosto é áspero, desagradável”. Segundo ele, só depois de muito
tempo o paladar europeu poderia acostumar-se ao prato. Spix e Martius,
naturalistas que acompanharam a comitiva da primeira imperatriz do Brasil, a
arquiduquesa austríaca Leopoldina, fizeram referência à “alimentação grosseira
de feijão-preto, fubá de milho e toucinho” em Minas Gerais. Também citaram o
feijão como alimento básico dos baianos, inclusive dos escravos. O
norte-americano Thomas Ewbank, em 1845, escreveu que “feijão com toucinho é o
prato nacional do Brasil”. Porém, o retrato mais vivo do preparo comum do
feijão – não é ainda a feijoada – foi feito pelo pintor francês Jean-Baptiste
Debret, fundador da pintura acadêmica no Brasil, sobrinho e discípulo de
Jacques-Louis David. Descrevendo o jantar da família de um humilde comerciante carioca
durante a estadia da corte portuguesa no Rio de Janeiro, afirmou que “se compõe
apenas de um miserável pedaço de carne-seca, de três a quatro polegadas
quadradas e somente meio dedo de espessura; cozinham-no a grande água com um
punhado de feijões-pretos, cuja farinha cinzenta, muito substancial, tem a
vantagem de não fermentar no estômago. Cheio o prato com esse caldo, no qual
nadam alguns feijões, joga-se nele uma grande pitada de farinha de mandioca, a
qual, misturada com os feijões esmagados, forma uma pasta consistente que se
come com a ponta da faca arredondada, de lâmina larga. Essa refeição simples,
repetida invariavelmente todos os dias e cuidadosamente escondida dos
transeuntes, é feita nos fundos da loja, numa sala que serve igualmente de
quarto de dormir”. Além de professor da Academia Real de Belas-Artes, Debret,
que esteve no Brasil entre 1816 e 1831, notabilizou-se pela realização de uma
verdadeira crônica pictórica do país do início do século XIX, em especial do
Rio de Janeiro, na qual constam pinturas como Armazém de carne-seca e Negros
vendedores de linguiça, além da referida cena da refeição. Portanto, nem só de
feijão viviam os homens. Os indígenas tinham uma dieta variada, e o feijão nem
mesmo era o seu alimento preferido. Os escravos também comiam mandioca e
frutas, apesar da base do feijão. Mas há o problema da combinação de alimentos,
também levantado por Câmara Cascudo na sua belíssima História da Alimentação no
Brasil. Havia, na Época Moderna, entre os habitantes da colônia (sobretudo os
de origem indígena e africana), tabus alimentares que não permitiam uma mistura
completa do feijão e das carnes com os outros legumes. Entre os africanos,
aliás, muitos de origem muçulmana ou influenciados por esta cultura, havia
interdição do consumo da carne de porco. Como, afinal, poderiam fazer nossa
conhecida feijoada? Na Europa, sobretudo na Europa de herança latina,
mediterrânica, havia – e há, informa Cascudo – um prato tradicional que remonta
pelo menos aos tempos do Império Romano. Consiste basicamente em uma mistura de
vários tipos de carnes, legumes e verduras. Há variações de um lugar para o
outro, porém é um tipo de refeição bastante popular, tradicional. Em Portugal,
o cozido; na Itália, a casoeula e o bollito misto; na França, o cassoulet; na
Espanha, a paella, esta feita à base de arroz. Essa tradição vem para o Brasil,
sobretudo com os portugueses, surgindo com o tempo – na medida em que se
acostumavam ao paladar, sobretudo os nascidos por aqui – a ideia de prepará-lo
com o onipresente feijão-preto, inaceitável para os padrões europeus. Nasce,
assim, a feijoada. Segundo Câmara Cascudo, “o feijão com carne, água e sal, é
apenas feijão. Feijão ralo, de pobre. Feijão todo-dia. Há distância entre
feijoada e feijão. Aquela subentende o cortejo das carnes, legumes,
hortaliças”. Essa combinação só ocorre no século XIX, e bem longe das senzalas.
O padre Miguel do Sacramento Lopes Gama, conhecido como “Padre Carapuceiro”,
publicou no jornal O Carapuceiro, de Pernambuco, em 3 de março de 1840, um
artigo no qual condenava a “feijoada assassina”, escandalizado pelo fato de que
era especialmente apreciada por homens sedentários e senhoras delicadas da
cidade – isso em uma sociedade profundamente marcada pela ideologia
escravocrata. Vale lembrar que as partes salgadas do porco, como orelha, pés, e
rabo, nunca foram restos. Eram apreciados na Europa enquanto o alimento básico
nas senzalas era uma mistura de feijão com farinha. O que se sabe de concreto é
que as referências mais antigas à feijoada não têm nenhuma relação com escravos
ou senzalas, mas sim a restaurantes frequentados pela elite escravocrata
urbana. O exemplo mais antigo está no Diário de Pernambuco de 7 de agosto de
1833, no qual o Hotel Théâtre, de Recife, informa que às quintas-feiras seriam
servidas “feijoada à brasileira” (referência ao caráter adaptado do prato?). No
Rio de Janeiro, a menção à feijoada servida em restaurante – espaço da “boa
sociedade” – aparece pela primeira vez no Jornal do Commercio de 5 de janeiro
de 1849, em anúncio sob o título A bela feijoada à brasileira: “Na casa de
pasto junto ao botequim da Fama do Café com Leite, tem-se determinado que
haverá em todas as semanas, sendo às terças e quintas-feiras, a bela feijoada,
a pedido de muitos fregueses. Na mesma casa continua-se a dar almoços, jantares
e ceias para fora, com o maior asseio possível, e todos os dias há variedade na
comida. À noite há bom peixe para a ceia.”
Nas memórias escritas por Isabel
Burton, esposa do aventureiro, viajante, escritor e diplomata inglês Richard
Burton, em 1893, remetendo-se ao período em que esteve no Brasil, entre 1865 e
1869, aparece um interessante relato sobre a iguaria. Falando sobre a vida no
Brasil (seu marido conquistou a amizade do imperador D. Pedro II, e ela
compartilhou do requintado círculo social da marquesa de Santos, amante notória
do pai deste, D. Pedro I), Isabel Burton diz que o alimento principal do povo
do País – segundo ela equivalente à batata para os irlandeses – é um saboroso
prato de “feijão” (a autora usa a palavra em português) acompanhado de uma
“farinha” muito grossa (também usa o termo farinha), normalmente polvilhada
sobre o prato. O julgamento da inglesa, após ter provado por três anos aquilo a
que já se refere como “feijoada”, e lamentando estar há mais de duas décadas
sem sentir seu aroma, é bastante positivo: “É deliciosa, e eu me contentaria, e
quase sempre me contentei, de jantá-la.” A Casa Imperial – e não escravos ou
homens pobres – comprou em um açougue de Petrópolis, no dia 30 de abril de
1889, carne verde (fresca), carne de porco, linguiça, linguiça de sangue, rins,
língua, coração, pulmões, tripas, entre outras carnes. D. Pedro II talvez não
comesse algumas dessas carnes – sabe-se de sua preferência por uma boa canja de
galinha –, mas é possível que outros membros de sua família, sim. O livro O
cozinheiro imperial, de 1840, assinado por R. C. M., traz receitas para cabeça e pé de
porco, além de outras carnes – com a indicação de que sejam servidas a “altas
personalidades”. Hoje em dia não há apenas uma receita de feijoada. Pelo
contrário, parece ser ainda um prato em construção, como afirmou nosso
folclorista maior no final dos anos 1960. Há variações aqui e acolá, adaptações
aos climas e produções locais. Para Câmara Cascudo, a feijoada não é um simples
prato, mas sim um cardápio inteiro. No Rio Grande do Sul, como nos lembra o
pesquisador Carlos Ditadi, ela é servida como prato de inverno. No Rio de Janeiro,
vai à mesa de verão a verão, todas as sextas-feiras, dos botecos mais baratos
aos restaurantes mais sofisticados. O que vale mesmo é a ocasião: uma
comemoração, uma confraternização, a antecipação do fim-de-semana no centro
financeiro carioca, ou até mesmo uma simples reunião de amigos no domingo. Um
cronista brasileiro da segunda metade do século XIX, França Júnior, chegou a
dizer mesmo que a feijoada não era o prato em si, mas o festim, a patuscada, na
qual comiam todo aquele feijão. Como na Feijoada completa de Chico Buarque:
“Mulher / Você vai gostar / Tô levando uns amigos pra conversar”. O sabor e a
ocasião, portanto, é que garantem o sucesso da feijoada. Além, é claro, de uma
certa dose de predisposição histórica (ou mítica) para entendê-la e apreciá-la,
como vêm fazendo os brasileiros ao longo dos séculos.
Bibliografia:
CASCUDO, Luís da Câmara. História
da Alimentação no Brasil. 2ª edição. Belo Horizonte; São Paulo: Ed. Itatiaia;
Ed. da USP, 1983 (2 vols.).
DITADI, Carlos Augusto da Silva. “Feijoada
completa”. in: Revista Gula. São Paulo, no 67, outubro de 1998.
DÓRIA, Carlos
Alberto. “Culinária e alta cultura no Brasil”. in: Novos Rumos. Ano 16, no 34, 2001.